29 de fevereiro de 2016

Um dia comum



Acordei como todo mundo acorda, tirei o mar revolto em cima de mim e acendi o sol. Não me admirava, era mais uma segunda-feira, ainda uma semana inteira. Desci as colinas da minha casa segurando firmemente no corrimão, projetado por quem conhece como ninguém as avalanches de sono.


Na língua, o pão estalava e teimava em descer. Mas já era tempo de correr, assim como o novo horário de verão muito bem obrigava, obrigada. Fui ao banheiro, liguei o som, desfrutei alguns minutos a liberdade de estar como vim ao mundo.


“Sonhos vem, sonhos vão e o resto é imperfeito", diz Renato Russo e, a música vira um momento fugaz na sua imperfeição, que você deseja ser eterno. Mas então, Titãs te confunde porque é "pra sempre enquanto durar" e há de "pedir somente o que puder dar". Saí e avancei para o correio mais rápido que já existiu.


- 10h23m17s, que tal?
- Vou me atrasar.
- Que horas, então?
- 11h01m25s.
- Está bem.


Então, porque não ouvir mais uma música? Você quer colo, fugir de casa, dormir aqui com vocês. Descobre pela centésima vez que é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, afinal, se você for parar para pensar, não há. Mas há agora o desejo que o tempo escorra pelas suas mãos apenas para poder vê-lo.


Basta ir à estação, entrar no túnel do apocalipse zumbi. Porém, o trem para e você pensa que vai se atrasar mais do que imaginou. Talvez chegue às 11h05m07s. No aperto, enquanto tentava ler, temia ser possível que as melhores ideias também fossem ali exprimidas para fora. Começa a reparar nos pulsos onde repousam relógios que marcam horas desreguladas; 10h50m3s, outros 10h52m4s e ainda há aquele de 10h51m1s. Uma ousadia com o tempo, o relógio oficial, horário de Brasília, marca apenas 10h50m00.


De qualquer forma, nem nos mais sufocante dos ofícios o tempo se estende muito. Não me lembro se o dia estava quente, pois tinha um propósito muito maior: atravessar as ruas até me encontrar com ele. No caminho, folhas e poeiras me atingiam. Estava ventando. E mais um novo restaurante encontrado nos arrastava para o sabor do dia.


Eu e ele andando grudados, porque talvez estivesse mesmo frio. Menos de uma hora para comer, rir, pagar, observar o céu e a avenida, dizer mil loucuras de amor, planejar um milhão de formas de ser feliz.


- Que horas são?
- 12h50m25s.
- Já?
- Melhor ir para o seu ponto.
- Tem razão.


O farol fecha. O mais demorado da região. Olha por um momento, os relógios marcam 12h51m00s, mas um abraço ignora os ponteiros. Deseja cada vez mais aproveitar aquele momento. Extrai tudo o que pode dele e consegue senti-lo no vento, no sol, no calor e nos corpos juntos.


E dizem que o momento fugaz que deseja ser eterno são as grandes felicidades da vida. Será a felicidade um momento fugaz que luta para ser eterno? Um segundo tão bom, uma felicidade tão plena, que não pode permanecer mais do que alguns minutos, caso contrário se esgotaria em si mesma? Uma felicidade que desembainha uma espada e escudo, e mesmo assim não vence.


Suspirei apenas porque estou acostumada a fazê-lo nessas situações. Corre. Olha para o alto no metrô e vê muitas escadas. No mais, em poucos minutos, despede-se, faz a baldeação. Uma hora! Mas ninguém estava lá para ver que chegou. E escreve, escreve, responde, enraivece, critica, sorri, ri, se orgulha, escreve.


E ainda com a sensação do abraço amortecido. Que loucura são esses momentos que desejam ser eternos! Olha no espelho e se sente incapaz de explicar tais minutos por se tratarem de um sentimento. Percebe que se alguém puder explicá-lo e, ainda assim, outro alguém puder entendê-lo, nunca será em sua totalidade. O momento não se retém nos dedos da pessoa que vive e muito menos nas mãos do outro.


Já são três, e é bom comer alguma coisa antes que meu organismo pense na possibilidade de absorver letras. O melhor é divinizar o prazer de parar e se nutrir antes que consumam também isso. Não fosse o prazer e passaríamos o dia inteiro naquele... Foco, volta! E volte logo que há textos para entregar e pessoas para entrevistar.


Pesquisa na internet, luta contra o tempo, liga e desliga, atende e, mais uma vez, suspira. Seis da tarde, e o tempo voa. Sete da noite, e se alegra ao ver tudo escuro, apesar de ser horário de verão. Vesti a blusa. Então, estava mesmo frio ontem! Sai correndo, pois não há segundos a perder. Anda pelas ruas e luta para a exatidão do cálculo perfeito dos minutos até chegar em casa. Tudo para que possa escrever! Que loucura, pois foi o que fez o dia inteiro. No trem, mais um poema, mergulhado na lembrança do abraço que já de deseja de novo.


Se perguntarem, você pode dizer isso mesmo. Momentos eternos e felizes são uma faísca fugaz que luta para ser eterna. Também há de se explicar que cada faísca de felicidade compõe a vida e que cada momento fugaz eterno na sua mente aumenta essa faísca, transformando-a em um raio de luz. Cada raio, por sua vez, dá sentido à vida. Mas poucos são os seres e situações capazes de lhe proporcionar esses raios.


Mas esquece isso. É divulgação, é trabalho, é livro, é redação sobre ontem, baldeação. Presta atenção, diabo, que você quase perdeu a estação! Desce as escadas. Mais uma vez, zumbis. Agora precisam se alimentar de casa. Segurei firme, que era para não trombar em ninguém, exceto na rima que não achava. Quem sabe já no balanço do carro lhe esbarrasse? Uma fala alegre repleta de oi, uma pergunta de como foi o dia.


- Ótimo!


E lembra-se do encontro, do farol. Os raios de felicidade têm um alcance incrível, muitas vezes não são necessárias palavras quando eles acontecem. Se elas fossem necessárias, seria para perguntar a outra pessoa se o momento foi fugaz o suficiente para que ela desejasse ser eterno.


Todos os momentos que querem ser eternos são imperfeitos e fugazes. Não seriam momentos fugazes que lutam para serem eternos se não fossem imperfeitos. Uma janta, e que janta! O prazer de degustar o prato da mãe. Sobe as colinas sem precisar do corrimão anti-avalanche e já senta na frente do computador.


Hora de realmente escrever, hora de passar tudo para o blog, hora de construir um nome, falar para o mundo, escolher o pijama mais estranho, e hora de fechar os olhos para esperar a conversa do dia seguinte.


- Esse foi um abraço muito bom.

- Concordo plenamente.

19 de fevereiro de 2016

Hospedeiro intermediário



Era até bonito de ver aquela vasta vegetação de guarda-chuva. Enfim algo que florescesse dentro dos prédios de São Paulo! E quanto mais água, mais desses se instalavam.

Demorei a me assustar diante de um processo nitidamente visto como natural desde os tempos em que tal apretrecho foi criado. No final do dia, eles iam desaparecendo, como a dama da noite inversa, que desabrocha de manhã e a noite se recolhe em seu refúgio.

Houve um dia então que o despertar ocorreu. Na noite anterior, me lembrava, não havia nenhum guarda-chuva. Mas no dia seguinte, que susto, um mar deles se instalara. Embora belos ao longe, quando se chegava perto era nítido que tinham virado uma praga. Todos abertos, arregalados como olhos assustados olhando na mesma direção do corredor. Era difícil passar por eles sem se sentir apequenando diante de tamanha fartura.

Em uma sala, quase tornou-se impossível entrar porque todos estavam à beira da porta, como se fossem arrebentar a qualquer hora para o corredor afora e engolir alguém desprevenido que não estivesse munido de um sobreaviso. Nesses dias todos, passei muito receosa. As pessoas, no entanto, pareciam não ver na cidade aquela voracidade.  Eles alimentavam-se de água, era mais que claro. Parasitas que começavam a se incubar em mochilas e bolsas. Quando atingiam a fase adulta, diante de grande abundância de nuvens, saiam para fora e abriam-se para o mundo, investindo pesado em corredores e qualquer espaço onde as pessoas não pisavam muito. Creio que era a desidratação quem os matava. Conforme secavam completamente, desapareciam. Mas o ciclo estava longe de terminar, já que eram recolhidos pelos mesmos hospedeiros intermediários que os haviam trazido.

Um dia, me lembro bem, deixei um desses por ali (descuido tamanho!) e meia hora depois haviam dez. A ciência com certeza deveria estudar tal forma de reprodução. Estava quase entrando em contato com a secretaria da saúde perguntando se não iriam decretar estado de calamidade pública, quando os guarda chuvas começaram a sumir. Eram sazonais, então! Março acabava e os levava embora.

Respirei com alívio. Novamente era possível circular pelos corredores. Em uma lanchonete normal, pedi um salgado qualquer. Mas o pesadelo estava longe de acabar... Olhei para o lado e novamente me assombrei: um monte de notas fiscais saiam de uma pequena máquina que não parecia capaz de cuspir tamanha quantidade de papeis.

Senti o meu braço se arrepiar, mas me mantive firme. Comi o salgado e fui jogar a embalagem dele no lixo. Dei um passo para trás. Olhei ao meu redor. O mundo seguia normalmente enquanto eu estava assombrada com a lixeira gigante. Aquela boca enorme cheia de itens descartáveis não era sazonal.  A mesma questão rondava a minha mente, enquanto guarda-chuvas coexistiam proliferando no sistema urbano: por que a praga de guada-chuvas não apareceu nos noticiários? Por que nos acostumamos tanto aos excessos?

5 de fevereiro de 2016

Contrata-se: trabaiadô honesto dispensável



Olha o homi, é patrão conhecido
Na cidade, sempre diga sim senhô
Ele ignora, eô


E a banda toca
Com um superior se choca
Se tem que derrubá, aponta pa nóis
De lá, somos só e sóis


Prevendo o rebento damos um aceno
O moço, sem entender o gesto obsceno,
Continua vendo negócio em maus lençóis


Então um dia patrão responde o oê
É tudo irmão, ele diz
Mas no sigilo feliz
É gente estranha, eô


Sonho corre e na hora do adeus
Foges pra longe, por trás das terras
Já no garimpo tuas pedras, que perdas e feras
Que joia bela se concedeu - E te lembra que ainda há Deus!


Começou como ouro-ágata
Sem nada, presa em lata
Fundiu-se à grinalda
Formou-se esmeralda


Até que num dia a cobiça e o fogo
Graúdo de dinheiro e coronel aspirante
Entra no jogo pra fazer diamante


Mas entra sem convite
Não mais rubi, nem jeremejevite
Leva às cinzas sala-cozinha-casarão
Pra destronas de nós o barão


Fica então pedra bruta
Que alega fartura, mas tosa a labuta
Transforma lama e cais em jamais

Mesmo assim, toda gente que lá está diz: vás

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