8 de janeiro de 2016

Leia o começo do livro Cela 108!


Cela 108 é o primeiro livro de André Cáceres. Lançado pela editora Multifoco, ele conta a história de Dante, um homem obstinado por vingança, que trabalha como agente duplo em uma ditadura totalitária. Membro de um grupo de rebeldes, ele se infiltrou nos altos cargos do governo para arquitetar ao longo de anos uma revolução e libertar o povo.

Tudo se passa na Pátria, um país fictício onde pensar por conta própria é proibido: a produção artística e cultural se resume ao que o Partido permite, a censura é ostensiva, o monopólio é cruel e os recém-nascidos são tomados dos pais para que as novas gerações sejam doutrinadas e obedientes, perpetuando o sistema. Quem discorda tem um destino: a execução.

Um grupo de rebeldes sobrevive resgatando traidores dos corredores da morte e explorando as brechas do regime. Durante décadas, eles se estruturaram para poder agir por debaixo dos panos e corroer a ditadura de dentro para fora, e Dante é uma peça chave no plano dos opositores.

Tudo o que ele queria era um mundo melhor, mas perdeu a única pessoa que amava para as garras do governo e desde então se aliou aos rebeldes para derrubar o Partido. Mas será que tomar o poder é suficiente para libertar mentes vazias? Ou o trono corrompe as pessoas? Descubra em um livro eletrizante que bebe da fonte dos grandes clássicos da ficção científica e distopia, como 1984 (George Orwell), Fundação (Isaac Asimov), Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), O Homem do Castelo Alto (Phillip K. Dick) e Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley)!

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Confira o começo do livro:

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CELA 108 - PRÓLOGO

O lado bom de apodrecer na cadeia é ter tempo livre de sobra. Talvez até demais. Conviver exclusivamente com os próprios pensamentos por mais de duas décadas pode transformar profundamente uma pessoa. A mente humana é uma caixa de pandora. Raphael, um jovem sagaz de apenas 22 anos, não sabia disso ao subir a escadaria da torre leste do complexo penitenciário da Capital. Ofegante, galgava a passos largos os irregulares degraus carcomidos do edifício que outrora testemunhara tempos de glória, mas que agora não passava de um mero depósito de presos políticos à espera da morte, também chamados de traidores da Pátria. Era um desses ilustres detentos que interessava a Raphael. Seus longos cabelos negros denotavam um certo ar de rebeldia característico dos jovens, sentimento que confiava-lhe a ingenuidade necessária para crer num mundo melhor. Amante da liberdade e da justiça, ele acreditava estar prestes a mudar o rumo de seu país nas horas que se sucederiam sua escalada à cela número 108. Seus olhos, determinados e irredutíveis, observavam o caminho iluminado pela lanterna que segurava na mão esquerda enquanto alcançava o último andar da torre.

O som da chuva torrencial que castigava a cidade naquela noite de dezembro era reforçado pelos trovões decorrentes da tempestade e pelos fogos de artifício que começavam a se tornar frequentes à medida que o ponteiro do relógio central aproximava-se da meia noite. Cada novo estampido denunciava a chegada de mais um ano e fazia o coração de Raphael acelerar. Tudo se encaminhava de maneira brilhantemente orquestrada para o grande momento. A nítida imagem da cela 108 o fez parar subitamente. Um grande clarão ofuscou todo o andar, seguido por um estrondo que percorreu o ambiente e ressoou em sua alma. Apenas mais um raio, nada demais. O número 108 é sagrado no budismo, hinduísmo e em várias outras religiões orientais. O um, o nada e o tudo representados pelos respectivos algarismos. O tempo fez com que o 8 pregado na parede do cárcere por tantos anos caísse para o lado, revelando o símbolo do infinito. Claro que Raphael não havia notado isso. Nem existiam religiões ou crenças na Pátria, muito menos conhecimento sobre terras ao oriente, além das fronteiras. Esse tipo de informação era para poucos. Cuidadoso, guardou seu revólver no coldre, sacou rapidamente o molho de chaves ensanguentado que, quinze minutos antes, estava sob a posse de um carcereiro, e abriu a porta de ferro reforçado do cubículo. Ao adentrar o recinto, o cheiro de mofo tomou conta de suas narinas e uma sensação de mal estar o invadiu. Apesar da lanterna que carregava, a escuridão era densa e assustadora. Seus olhos percorreram a parte iluminada da cela e se depararam com um pequeno papel dobrado no chão. Temeroso, olhou em volta, agachou-se e o recolheu. Algo estava escrito com uma letra tremida e pesarosa.

“Se você está lendo isso, eu já sou um homem morto. Passei tempo demais nesse lugar. Pensamentos, reflexões, arrependimentos e lembranças não pararam de latejar na minha cabeça nos últimos vinte e dois anos. Os gregos defendiam o ócio a fim de desenvolver as potencialidades intelectuais de seus pensadores. Não posso negar que eles estavam certos. Trancafiado nessa cela, me vi condenado a encarar a cruel companhia de minha própria mente a cada segundo do dia e tive a oportunidade de remoer todas as minhas memórias, enfrentar todos os meus traumas e, por fim, tomar minha última decisão. Ironicamente, após tanto tempo sem ver o rosto de pessoa alguma, pude compreender melhor a natureza de todas elas. Agora sei por que o nível mais profundo do Inferno foi destinado aos traidores.

Dante, 31 de dezembro de 1983”

– Não! – gritou Raphael.

– Quem está aí? – uma voz rouca irrompeu da escuridão.

O jovem disparou em direção à voz, desta vez com a arma em punho, até que a luz de sua lanterna iluminou uma figura medonha. Um senhor de idade, aparentando mais 80 anos, com expressão pesada e olhos fundos. Suas costas largas eram curvadas, e sua barba, longa e espessa, assim como seus cabelos. Extremamente magro, quase com o aspecto de um defunto. À volta de seu pescoço havia uma corda feita de pano velho, amarrada num lustre antigo e enferrujado que pendia do teto. O homem estava de pé sobre um pequeno banco de madeira maciça. Os relâmpagos que tornavam a iluminar seu rosto através de uma pequena janela na parede oposta davam-lhe a aparência de um fantasma.

– Você é o lendário Dante? – perguntou-lhe Raphael, apreensivo.

– Já fui. Não o sou mais.

– Desça daí, precisa vir comigo. Temos muito a fazer!

– Não posso fazer mais nada. Já sou um homem morto. – retrucou Dante e, com um rápido movimento, derrubou o banco que lhe dava sustentação, deixando-se cair, esperando encontrar a eternidade.



CAPÍTULO I

Fogos de artifício cruzavam o céu nublado e escuro anunciando a chegada de 1961. A nova década alimentava esperanças no coração de Dante, que se encontrava em seu escritório, trabalhando incessantemente, quase alheio à comoção que o ano novo gera nas ruas. Era um dos poucos dias do ano no qual as pessoas se permitiam festejar, além, é claro, de 21 de fevereiro, o Dia da Pátria. Ninguém sabia ao certo o que significava essa data, pois o estudo da história por meios extraoficiais era expressamente proibido e a literatura do governo não mencionava fatos anteriores à fundação da Pátria. Tudo o que o povo sabia era ensinado nas escolas por meio de apostilas aprovadas pelo Ministério do Conhecimento. Só se era ensinado o que o Partido julgava necessário. A curiosidade era má vista.

Em sua mesa, Dante tinha uma vitrola, comumente usada para tocar o hino do Partido, mas que naquele momento produzia um som desconhecido por quase todos. A Sinfonia nº9 de Beethoven, assim como a História, fora banida do país juntamente com qualquer obra de arte, música ou literatura estrangeira. Mais de cem anos depois, a cultura de fora da Pátria era completamente desconhecida. Não para Dante, que se concentrava ao som da sinfonia. O contrabando de obras de arte, livros e outros artigos estrangeiros era bastante ativo, apesar de se limitar a um grupo seleto de rebeldes infiltrados na sociedade ou no governo, como o próprio Dante. Ele sabia que estava a salvo, pois não havia ninguém por perto. Todos estavam na rua comemorando o réveillon. Eram poucos os momentos de segurança para alguém como ele. Sozinho, enquanto as notas atingiam seus ouvidos com a ferocidade de um leão rugindo, Dante redigia relatórios na máquina de escrever. Por vezes, as batidas das teclas se sincronizavam com a música, causando-lhe um efeito quase inebriante.

Atrás de sua mesa, a janela proporcionava a vista de toda a Capital e ficava na direção do gabinete do Presidente, localizado do outro lado da imensa Praça Central. Com predomínio da arquitetura neogótica do início do século XIX, as torres da cidade se entrelaçavam no céu, formando uma paisagem deleitosa até mesmo ao mais desinteressado observador. Ao lado da janela, um relógio de pêndulo se destacava de forma imponente. Na parede lateral do recinto, uma grande estante de livros quase vazia, feita em mogno e empoeirada dava a falsa impressão de abandono. No chão, um largo tapete vermelho se estendia até os pés do sofá que repousava próximo à porta, que jazia fechada. As paredes escuras e rochosas conferiam um ar depressivo ao ambiente como um todo, o que combinava perfeitamente com o único habitante do lugar. Com cabelos bem penteados e barba levemente por fazer, Dante mantinha em seus olhos fundos a expressão cansada de quem já havia feito muito, mas sabia que tinha muito mais o que fazer ainda. A xícara na mesa, esvaziada há pouco, ainda exalava o aroma do café. A camisa social alinhada e a gravata arrumada não condiziam com seu visível cansaço, mas davam-lhe um tom sério e confiável.

Os únicos sons que atrapalhavam a obra de Beethoven eram os fogos de artifício ao longe, o relógio e a máquina de escrever, até que Dante ouviu passos no corredor. Apressou-se a desligar a vitrola e retirar o vinil, guardando-o numa gaveta discreta e voltando sua atenção para a porta, que se abrira com um ruidoso estrondo.

– O freunde, nicht diese töne! Ó, amigos, não nesse tom! – disse misteriosamente um homem de traços rústicos e feições sérias, costas largas envoltas por um sobretudo marrom e raros cabelos cobertos por um chapéu elegante. O bigode cheio e grosso contrastava com a calvície adquirida ao longo dos anos. Seus olhos pequenos encaravam o sujeito sentado à mesa, como que o desafiando.

– Sondern laßt uns angenehmere. Em vez disso, cantemos algo mais confortável. – respondeu Dante, impassível. Esse era o cumprimento usado pelos membros de uma organização secreta que se opunha ao governo da Pátria há décadas. Os dois primeiros versos do coro da Sinfonia nº9 de Beethoven, o “Hino à Alegria”. Talvez uma forma irônica de se referir à situação política do país, talvez uma alusão à voz que ecoa após um silêncio muito longo, provando que mesmo depois de tanto tempo, o povo ainda haveria de ter sua liberdade novamente. Ou talvez fosse apenas um capricho extravagante dos rebeldes.

– Esperto como sempre, meu caro amigo! – declarou, abrindo um sorriso. – Mas não deveria estar ouvindo isso aqui. Como bem sabe, essa excepcional canção, assim como todas as outras, é proibida na nossa ilustre Pátria. Não julga ser uma provocação indiscreta demais apreciá-la bem no coração do governo?

– Estou acostumado a provocar os cães sarnentos do Partido desde os meus 13 anos, Arthur.

– Oh, isso é verdade. Conhece bem nossos ideais, meu caro amante da liberdade.

O alvoroço na rua tornou-se mais perceptível e a queima de fogos, mais audível. O pêndulo do relógio corria de um canto a outro sem piedade e os ponteiros continuavam sua constante caminhada. A meia noite se aproximava e, com ela, um ano histórico se preparava para surgir. Para alguns poucos iluminados, já era possível saborear as mudanças que 1961 prometia trazer. Após três décadas de árduo trabalho sem vislumbrar nenhuma recompensa, agora o futuro lhes batia à porta. Tudo dependia do que viria a se suceder no ano que ingressaria nas próximas horas. Dante e Arthur o sabiam como ninguém.

– Veio ao meu escritório apenas para interromper minha música sem nem me desejar feliz ano novo? – perguntou Dante, impaciente.

– Tenho algumas informações importantes para você. – e tirou de dentro do casaco uma pequena pasta contendo algumas folhas de papel – mas prefiro conversar em um lugar mais seguro.

– Não há com o que se preocupar, o prédio está vazio hoje.

– A precaução nunca é demasiada, meu caro. Ainda mais tendo a consciência do poder de nossos inimigos.

Ambos se entreolharam e, durante uma longa pausa, permaneceram quase que dialogando com os olhares, até que Dante levantou-se de repente e dirigiu-se à estante de livros quase vazia, localizada à sua esquerda.

– Tranque a porta e apague a luz.

Enquanto Arthur atendia ao pedido, seu companheiro passava a mão esquerda pela lombada dos poucos livros que guardava naquela peça de mobília. O anel em seu dedo reluzia conforme a luz dos rojões atacava-o. Todos os volumes expostos na estante foram impressos pela editora do Partido. Não poderia ser diferente, afinal era a única do ramo e qualquer impresso de fora do país era expressamente proibido dentro daquelas fronteiras. A maioria dos tomos continha escritos sobre a doutrina e a filosofia do Partido. Apenas três eram romances de ficção, mas a literatura naquele país era muito defasada e os contos não passavam de narrativas quase infantis com lições de moral que, de forma simplificada, ensinavam a não discordar das autoridades e do governo. Uma parcela dos livros eram supostamente baseados em fatos reais e contavam a história de algumas personalidades importantes do Partido, mostrando-as como verdadeiros exemplos a ser seguidos. A biografia do atual Presidente foi um verdadeiro best-seller por mais de duas décadas, com reedições lançadas anualmente narrando os feitos heroicos do grande líder.

Após passear rapidamente pelos títulos, os dedos de Dante pairaram sobre um livro velho e desgastado, datado de 1922, que falava sobre o então Presidente da Pátria. Repousou a mão na lombada do volume e puxou-o com força para si. O movimento acionou um estrondoso mecanismo que começou a girar a prateleira toda. Uma breve lufada de ar foi lançada na direção do rosto de Dante, que aguardou enquanto a passagem secreta se abria diante dos seus olhos, revelando uma escadaria logo abaixo, iluminada por algumas tochas nas paredes que não o permitiam enxergar mais de cinco degraus à sua frente.

– Vamos, rápido. – apressou Dante, ingressando no estreito corredor e desaparecendo na escadaria.

Após alguns segundos admirando os fogos que iluminavam a noite pela janela, Arthur observou o relógio – quinze para a meia noite – e seguiu Dante pela passagem secreta de seu escritório. Puxou uma das tochas para baixo, fazendo com que a estante tapasse a entrada atrás de si.



CAPÍTULO II

A cada minuto, os olhos do Presidente voltavam-se para o grande relógio na praça central. Aquele era, sem dúvida, o coração da Pátria, e a multidão estava ansiosa pela aparição do líder da nação. Faltavam apenas quinze minutos para a meia noite e ele não via a hora de se livrar daqueles vermes.

– Chega! – bradou contra o maquiador que insistia em tentar disfarçar uma cicatriz. – Eu tenho essa marca no rosto há mais de trinta anos, não é um pó vagabundo que vai tirar isso daí. – Ele se lembrava muito bem da mulher que causara aquele ferimento. Ela morreu por isso.

– Mil desculpas, senhor Presidente!

– Cale a boca. Me deixe em paz, anda. Não preciso de maquiagem.

Todos os anos, no réveillon, ele discursava para o povo. O Presidente já havia feito aquilo mais vezes do que gostaria de admitir. Passara as noites de ano novo das últimas três décadas aguardando a primeira hora de janeiro para realizar suas aparições públicas. Não compreendia o que as pessoas achavam de tão interessante num velho falando durante a virada do ano, mas continuava a fazê-lo por obrigação. Já não sabia mais o que inventar para dizer e considerava seriamente repetir alguns de seus primeiros discursos, afinal ninguém perceberia o truque. O povo tinha memória curta e não precisava de nada mais do que pão e circo. O Presidente sabia disso como ninguém.

– Preciso me aposentar logo. – resmungou enquanto voltava a fitar o relógio. Seus olhos exibiam uma expressão cansada, reforçada pelas rugas adquiridas com o tempo. A cicatriz que atravessava sua face dava-lhe o aspecto de um guerreiro a princípio, mas a imensa barriga não deixava que essa impressão se tornasse predominante.

O rosto largo e redondo estava repleto de maquiagem – contra a sua vontade, diga-se de passagem. O Presidente já tivera um porte atlético e saudável, mas passar três décadas assinando decretos, fazendo discursos e se reunindo com conselheiros não era exatamente o tipo de rotina mais recomendada para quem pretende se manter magro.

A noite estava agradável e o céu brilhava devido aos constantes rojões. Da sacada do gabinete presidencial era possível visualizar as ruas tomadas por cidadãos, ávidos por ver pessoalmente o homem do ano eleito pelo jornal O Correio da Pátria – nos últimos 35 anos, esse posto pertencera ao Presidente ou a alguém ligado a ele. Do alto, era possível observar vários dos grandiosos monumentos à Revolução de 1848 que instaurou o regime do Partido, erigidos por todos os cantos da Capital. É claro que não havia como enxergar um jovem caminhando em meio à multidão, vestido com um casaco de moletom azul e usando um capuz para cobrir as feições. Em seu peito, reluzia uma bela insígnia dourada e de formato enigmático. Ele destacava-se dos demais por assoviar com maestria a melodia de alguns trechos da sinfonia nº9 de Beethoven, incomodando as pessoas por entre as quais passava em direção ao prédio de onde o Presidente discursaria. Atento a tudo que se passava à sua volta, por vezes parava para tomar nota de alguma observação importante e logo voltava a caminhar. Ao chegar à Praça Central, notou a presença de um agente da polícia secreta – ele sabia muito bem como reconhecer um. Girou sobre os calcanhares, mudou drasticamente de direção e olhou de relance para trás. O homem havia percebido sua movimentação e isso era suficiente para despertar-lhe suspeitas – também sabia reconhecer um rebelde sorrateiro.

– Ei, você! – chamou o agente.

O jovem guardou o bloco de notas num bolso interno do casaco, puxou a ponta do capuz para baixo, escondendo ainda mais seu rosto e avançou, mergulhando na multidão.

– Pare onde está, seu moleque!

Apressando o passo, ele fingiu não ouvir as ordens e pousou uma das mãos sobre a cintura, onde guardava um punhal de prata que recebera de seu mentor. O rumor das pessoas em volta aumentou quando o relógio mostrou 23h59.

– Um minuto, senhor Presidente. Está pronto? – perguntou o assistente no gabinete presidencial, olhando para o grande relógio no alto da torre, no centro da Praça Central, que indicava o horário oficial da Pátria.

– Estou. – disse tentando levantar-se da cadeira em que ficara sentado pelas últimas duas horas. Os cento e doze quilos do Presidente cambalearam para o lado, mal distribuídos em um metro e sessenta e nove centímetros de altura, cobertos por um terno cinza escuro muito bem alinhado, uma cartola elegante e uma gravata borboleta vermelha de seda, quase cintilante. Após vacilar por duas vezes, o Presidente ficou de pé com a ajuda de seu assistente e iniciou sua curta caminhada em direção à sacada.

– Trinta segundos! – berrou o funcionário.

A muitos metros dali, o jovem encapuzado tentava em vão despistar o policial enquanto a euforia tomava conta das pessoas. Virou-se para trás e, por alguns instantes, seu olhar cruzou com o de seu perseguidor, que gritava algo inaudível graças ao furor do ambiente enquanto gesticulava freneticamente. Avistou mais à frente a entrada de um beco e suas passadas largas e discretas deram lugar uma ligeira corrida. Esbarrou nas pessoas para afastá-las do caminho e percebeu que o guarda estava cada vez mais próximo.

– Quinze segundos, senhor Presidente!

Com dificuldade, alcançou o beco e saiu em disparada pela viela escura. O policial chegou logo atrás, sacou a arma e começou a correr desenfreadamente em seu encalço.

– Dez!

O jovem dobrou à esquerda e puxou o punhal. Trêmulo, parou diante da esquina, à espera do momento certo.

– Cinco!

Cautelosamente, o agente acendeu uma lanterna e continuou sua perseguição com o revólver apontado para a frente e o dedo no gatilho, pronto para puxar.

– Saudações, cidadãos da Pátria! – disse o Presidente ao microfone no instante em que o relógio completou a última volta de 1960, enquanto a histeria coletiva invadia a Capital.

O disparo seco de um revólver num beco escuro foi abafado pelo barulho da multidão.



CAPÍTULO III
Passos apressados ecoavam pelo corredor parcialmente iluminado pelo qual Dante e Arthur seguiam. Após uma longa descida, as escadas terminaram, desembocando em um estreito corredor subterrâneo que cortava a Praça Central da capital em direção a uma galeria desativada. A poeira suspensa no ar denunciava o abandono daquele local usado como uma das bases da oposição ao Partido. Mais alguns metros e os dois chegaram a uma sala pequena e claustrofóbica com uma mesa redonda de madeira no centro. Do teto, pendia uma lâmpada com mal contato, ameaçando mergulhar o recinto na escuridão cada vez que falhava.
– Sente-se, fique à vontade. – disse Dante puxando uma cadeira para si após dar a volta em torno da mesa – O que o traz aqui?

– Venho para lhe trazer algumas informações importantes. – deixou a pasta cair por sobre a mesa e empurrou-a para o outro, que retirou os papéis e começou a examiná-los – Esses são alguns dos agentes do governo que serão transferidos de outras cidades para a Capital.

– Todos eles vão trabalhar no prédio da Praça Central?

– Alguns deles, sim. Serão seus novos colegas. Tome muito cuidado com eles.

– Algo que eu deva saber em especial?

– O governo já deve suspeitar de rebeldes infiltrados, então é provável que alguns desses funcionários estejam cientes disso. Talvez eles estejam sendo transferidos justamente para identificar possíveis traidores.

– Vou ficar atento.

– Mais do que atento, você deve permanecer alerta vinte e quatro horas por dia.

– Eu sei.

– Isso inclui não ouvir Beethoven no escritório.

– Já disse que não tem ninguém no prédio hoje, eu fiquei até mais tarde trabalhando em alguns relatórios.

– Não importa. Se te descobrirem, nossa revolução vai por água abaixo, e não queremos isso depois de tanto tempo de preparação.

A pausa que se sucedeu foi longa e constrangedora. Dante odiava ser repreendido e fuzilou Arthur com o olhar, enquanto este devolvia na mesma moeda. O momento foi interrompido pelo barulho da multidão acima de suas cabeças, que se tornou ensurdecedor.

– Feliz ano novo, meu caro amigo – comemorou Arthur, enquanto Dante se mantinha calado e impassível. Após alguns instantes de silêncio, este respondeu finalmente.

– Feliz ano novo.

– E será um ano muito importante. Portanto não faça nada que possa nos prejudicar.

– Certo.

– Fique tranquilo, não vou reportar nada disso ao Mentor.

– Mais alguma coisa?

Arthur sacou uma caneta de seu bolso e começou a fazer anotações e circular algumas partes do dossiê.

– Preste atenção nessa Beatriz e na Caroline. Elas vêm do quartel na Cidade do Norte e pode ser que tenham algum tipo de informação privilegiada sobre nosso grupo. Pierre e Levy também. Esses aqui são todos do leste, altamente treinados e ortodoxos – e continuou a falar, dando praticamente uma palestra acerca dos novos funcionários da Capital.

Balançando a cabeça afirmativamente, Dante recolheu os papéis e os guardou novamente na pasta.

– Está tudo aqui, né? – não parecia muito concentrado na resposta de seu interlocutor.

– Sim, mas…

– Depois eu leio com calma.

– Não vai se esquecer, hein?

– Feliz ano novo, Art. Feliz ano novo. – sussurrou Dante apressadamente, fazendo um gesto para que seu companheiro se calasse. Puxou uma pistola da cintura e levantou-se com calma para não fazer barulho. No corredor oposto ao que os trouxe à sala de reuniões, passos pesados eram ouvidos. Arthur hesitou ao perceber o barulho, mas também sacou sua arma e pôs-se em guarda. Os passos ficaram mais próximos.



CAPÍTULO IV

Feliz ano novo! – os alto-falantes ressoavam as palavras do Presidente, que começara sua mensagem de carinho aos cidadãos – É um grande prazer estar aqui com todos vocês para celebrarmos juntos! – falou, exibindo um largo e afetuoso sorriso no rosto grande e redondo.

A dois quarteirões de distância, uma poça de sangue começava a se formar num beco estreito e sem iluminação. Dois corpos jaziam estendidos no chão, imóveis por alguns instantes. Ofegante, o mais jovem abriu os olhos, arrastou-se com dificuldade em direção ao seu oponente. Este permanecia sem reação, deitado de bruços, com o rosto para o lado. Ao verificar o pulso do policial, o rapaz constatou que ele estava morto. Retirou o punhal encravado na testa do homem, limpou a lâmina nas vestes dele. Seu ombro latejava de dor. Sangue escorria por onde o projétil havia penetrado, atravessando-lhe o osso e escapando pelas costas. Rasgou a manga do falecido perseguidor e usou o tecido para tentar estancar o sangramento.

Ainda gemendo de dor, recolheu a arma que o feriu e a lanterna que repousava no chão, iluminando uma parede de tijolos. Fez um esforço para levantar o corpo ensanguentado do policial e o arrastou pelo beco até um latão de lixo. Depositou o pobre diabo e baixou a tampa. Vestiu novamente o capuz que havia caído com o tombo. Deixou o local escorando-se nas paredes, segurando o ombro baleado com a mão. Para não ir de encontro à multidão ensandecida que se encontrava nas ruas, saiu em busca da primeira tampa de esgoto que encontrasse. Ao avistar uma, abaixou-se cuidadosamente e, começou a puxar para si, fazendo toda a força que sua condição permitia. Após algumas tentativas sem sucesso, notou vozes acaloradas no corredor do beco por onde entrara.

– Alguém está aí? – gritava um homem com voz potente e decidida, enquanto andava a passos largos – Polícia! Quem quer que esteja aí, pare imediatamente e identifique-se em nome da Pátria!

O desespero tomou conta do rapaz, que se esqueceu momentaneamente de seu ferimento e passou a puxar a tampa com a duas mãos. Uma dor lancinante trespassou o ombro, mas o pânico e a necessidade de remover aquele pedaço circular de metal do chão eram evidentemente maiores.

– Tem sangue aqui!

Um feixe de luz cortou a escuridão atrás de si. Com um esforço sobre-humano, conseguiu que a peça se movesse para cima. Posicionou rapidamente o pé na entrada do esgoto, impedindo que a tampa voltasse para o lugar.

– Eu ouvi esse barulho! Não se mova, seu meliante!

Dez segundos depois, o policial encontrava-se sobre uma tampa de bueiro, balançando a lanterna de um lado para o outro em busca de algum sinal do elemento que supostamente teria fugido para aquele lugar como alguns transeuntes denunciaram. Cinco metros abaixo, um jovem ferido descia lentamente uma escada de ferro em direção às galerias subterrâneas. “O risco de pegar tétano nesse lugar é bem melhor que levar outro tiro”, pensou. Ao terminar a descida, chegou a um longo corredor iluminado precariamente por tochas presas à parede. Ouviu vozes em uma das direções e suspirou aliviado. “Estou à salvo”.

Seguiu o caminho ainda utilizando as paredes como apoio e, após algum tempo chegou a uma sala apertada, na qual dois homens bem vestidos se encontravam. Surpreendeu-se quando apontaram armas em sua direção.

– Calma, não atirem! Por favor!

– Quem é você? – questionou o homem de gravata e barba por fazer que encontrava-se de pé ao lado de uma mesa de madeira.

– Nicht diese… – bufou o rapaz, tentando recordar alguma coisa em sua memória.

– O quê?

– Diese… diese töne.

– Que diabos você está dizendo? – bradou o senhor calvo e de bigodes do outro lado da mesa.

– O freunde, nicht diese töne! – conseguiu finalmente pronunciar.

Os dois entreolharam-se confusos e, por fim, baixaram os revólveres, seguindo cautelosamente em direção ao intruso.

– Sondern laßt uns angenehmere. – sussurrou Dante enquanto auxiliava o desconhecido a ir até a cadeira mais próxima.

Arthur revistou o jovem, identificando entre seus pertences um punhal, um revólver, uma insígnia e uma lanterna, todos ensanguentados. Repousou os objetos sobre a mesa e fez um gesto para Dante, que iniciou o interrogatório.

– Quem é você, garoto?

– Meu nome é William, eu sou um soldado das forças rebeldes opositoras.

– Pode provar o que está dizendo? – pegou a lanterna que estava em cima da mesa e a ligou, apontando para o rosto do jovem.

– S-sim, posso. – gaguejou, cerrando os olhos ofuscados pela luz forte. Meteu a mão num bolso secreto de seu casaco, tirando um bloco de notas.

Dante fuzilou Arthur com um olhar de reprovação ao perceber que não havia revistado perfeitamente. Este exibiu um sorriso amarelo e encolheu os ombros.

– Nesta noite, o contingente estava todo nas ruas para reconhecimento e observação do esquema de segurança do governo para contenção de multidões. – explicou o rapaz, trêmulo e hesitante.

Dante apagou a lanterna e gesticulou para que Arthur verificasse os papéis.

– E como você chegou até aqui?

– Fui perseguido por um agente da polícia secreta, consegui fugir para um beco e…

– Você foi perseguido?

– S-sim…

– Mas que diabos! Vai trazê-los para cá!

– Eu eliminei um policial e despistei outro.

– Não treinam mais os moleques antes de deixá-los sair pra rua fazendo besteira?

– Peço desculpas, senhor!

– E como foi que você se machucou?

– Ele veio atrás de mim, eu cravei aquele punhal na testa dele, mas o maldito me acertou um tiro no ombro.

– Na testa, é?

– Isso.

– Bom garoto.

– Obrigado.

– Está certo. Deixe-me ver isso aí, anda.

– Eu preciso de um médico, senhor!

– Cale a boca e tire a mão daí, senão eu vou te dar um tiro no outro ombro, moleque.

Um berro de dor confundiu-se com as vozes que gritavam alguns metros acima naquela noite.

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