8 de setembro de 2015

Entre a sanidade e um cano de revólver - Parte 3 de 3


Atenção! Essa é a parte final desse conto! Clique aqui para ler a parte 1 e aqui para ler a parte 2.
Isso era bem incomum para mim. Na verdade, era inédito. Quem estava com as cuecas borradas era eu, e não meu alvo. Em 17 anos nessa carreira de assassino profissional é normal encontrar algumas coisas curiosas, estranhas e até mesmo um pouco assustadoras. Mas nunca vi nada desse nível. O velho babão que eu tinha rendido e estava prestes a matar com um tiro bem colocado no coração agora estava na minha frente na forma de um monstro repugnante. A pele cinzenta parecia não refletir a luz, como se ele não estivesse de fato no mesmo universo que eu. Os olhos queimavam como duas velas acesas, as asas enormes quase não cabiam na sala, assim como seus chifres retorcidos. Nas mãos, com garras pontiagudas, a fera segurava uma foice de aspecto macabro.
— Mas o que significa isso? — apontei o revólver em sua direção, sem muita esperança de assustá-lo mais do que ele estava assustando a mim.

— Pelo menos vocês acertaram na foice — não entendi o que ele quis dizer e fiquei olhando com uma cara confusa durante alguns longos segundos. 

— Quer saber? Vou acabar logo com isso — puxei o gatilho e o acertei em cheio. Não sei se esperava que aquilo realmente funcionasse, mas se eu tivesse algum tipo de expectativa, ela havia acabado de se esvair por completo quando vi a bala ricochetear no peito da besta e atingir a parede oposta. A criatura dirigiu-se calmamente até o local onde o projétil havia aterrissado e o pegou em suas mãos. Observou-o por algum tempo.

— Está gravado com o nome daquele velho. Quando encontrá-lo, eu vou entregar seu presente a ele, pode ficar tranquilo. 

— Quem é você? — não sei até que ponto a pergunta era válida, mas aparentemente ela surtiu efeito.

— Sou a Morte, ora bolas.

— Puta que pariu. Você fala português e usa gírias inadequadas? — sim, para um assassino frio e calculista eu fui um tanto quanto imprudente nessa. 

— Cale a boca. Eu disse que lhe darei uma segunda chance porque gostei de você. Me identifiquei, na verdade. Somos um pouco parecidos, eu e você. Sabemos separar os negócios de outros assuntos. E por falar nisso, eu estou aqui cumprindo um trabalho para o qual fui contratado. Se você não quiser ser o meu próximo alvo, eu tenho um serviço para você — esse era definitivamente o meu cliente mais importante, e olha que eu já tinha emprestado minhas habilidades aos homens mais poderosos da Terra. — E não se esqueça de que eu posso caçar você onde estiver. Siga as instruções que estão sobre aquela mesa e quem sabe você não poderá ser útil para mim daqui em diante? Estou precisando me aposentar. Não posso negar que você tem capacidade para assumir meu posto.

Ótimo, parece que eu havia acabado de arranjar emprego para a eternidade. Literalmente. Olhei em volta pelo gabinete do presidente da empresa e havia alguns papéis grampeados e cuidadosamente arrumados sobre sua escrivaninha. Voltei a mirar a fera, mas não a encontrei. A Morte havia sumido por completo e eu estava sozinho naquela sala com instruções para invadir um apartamento e matar um homem. Curiosamente não havia nenhuma foto do sujeito, quanto menos seu nome era informado. No entanto, o documento dizia que o alvo estaria em sua sala sem sombra de dúvida e seria a única pessoa no apartamento. Eu deveria eliminá-lo e poderia ir embora. Caso as instruções não fossem seguidas à risca, o monstro viria me buscar para algo não muito agradável. Aparentemente eu não tinha escolha.

Apartamentos não costumavam ser áreas difíceis de se infiltrar. Pelo menos não para quem já entrou e saiu de uma base militar deixando para trás o corpo de um general estendido em seus aposentos, que só foi descoberto horas depois. Entrar em empresas é mais complicado, mas às vezes eu prefiro assim porque é muito mais fácil ficar a sós com a vítima. Nunca encontrei resistência para adentrar mansões também. A única coisa que nunca me atrevi a fazer foi matar alguém em público sem ser notado, mas ainda é um fetiche que eu tenho. Não me olhe assim. Se você chegou até aqui, deve estar acostumado com a minha mente.
Existem alguns truques muito simples para entrar em um condomínio sem levantar suspeitas. Por exemplo, se passar por entregador de pizza. Antigamente esse funcionava melhor, mas hoje em dia já é um pouco manjado. Eu costumo ligar para uma garota de programa que conheço e fazê-la se passar por minha cliente. Ter uma mulher com você tira toda e qualquer chance de que você seja um criminoso na cabeça dos porteiros. Ainda mais se ela tiver um belo par de seios fartos e uma voz rouca e sensual. 

A donzela ajeitou os cabelos enquanto falava no interfone. Ela simulou não estar ouvindo nada e pediu que o funcionário viesse até o portão. O homem veio, enrubescido pela vista proporcionada pela bela dama. Até um cego podia ver que seu olhar não conseguia parar de descer pelo pescoço dela. A moça contou algo sobre estar indo visitar o apartamento que está à venda. A mentira foi tão bem feita que o porteiro se animou com a possibilidade de ela morar lá e apressou-se em permitir sua entrada. Eu seria o corretor, então consegui entrar também. Deixei que ela falasse o tempo todo para que o homem não se lembrasse de meu rosto ou minha voz, e me mantive em pontos cegos que as câmeras não cobriam bem, usando uma boina providencial que me deixava com cara de velho, mas impedia meu reconhecimento facial por parte do sistema de segurança. Sim, esse plano como um todo é ridiculamente simplório, mas sempre funciona. 

Uma vez dentro do condomínio, a tarefa era simples. Dispensei a ajuda da garota e me dirigi à torre do meu alvo, sempre me certificando de me manter inatingível em relação às câmeras de vigilância. Eu nunca tentava ocultar o cadáver ou disfarçar o crime de alguma forma, mas precisava ser o mais discreto possível para que o corpo só fosse descoberto quando eu já estava em segurança. Além do mais, não seria bom para os negócios se os clientes não tivessem certeza de que era eu quem tinha cumprido o serviço. No entanto, eu não podia ser pego então tinha de agir de modo a não levantar suspeitas até ir embora e não ser identificado. Mesmo que descobrissem quem era o assassino, não teriam como chegar até mim sem saber quem era o homem misterioso nas gravações. 

Entrei no elevador e apertei o botão. O andar era alto, o que não é bom. O tempo de fuga é maior e eu tinha de me assegurar que ninguém descobriria nada até que eu estivesse a muitos quarteirões dali. Não seria nada bom ficar preso dentro do condomínio porque algum vizinho estava em choque e o síndico ordenara que ninguém poderia entrar ou sair. Com tudo isso em mente, saí da caixa metálica sobre o poço e me dirigi à porta de meu alvo. O documento me assegurava de que ele seria o único no apartamento. Eu não ousaria duvidar de alguém à prova de balas e com asas daquele tamanho. Bati na porta. Eis que, quando penso que nada mais poderia me assustar naquele dia, me sinto novamente arrebatado no momento em que a porta se abre. 

— Estava te esperando — a voz era familiar. O rosto era familiar. O homem que apontava um revólver silenciado na minha direção tinha exatamente as feições do meu psicólogo. Aquele mesmo que havia tido a audácia de insinuar que eu poderia ser um psicopata e, como punição, eu dei cabo dele. Ou melhor, pensei que tinha dado, porque lá estava ele na minha frente.

— Como você pode estar aqui? -- retribuí a gentileza e apontei minha pistola para ele, sem esconder o olhar de surpresa e confusão.

— Você pensou mesmo que eu morreria  naquele acidente? 

— Por onde você andou?

— Eu lhe agradeço. Você me deu um belo presente. Graças à sua farsa, pude conseguir uma identidade nova e planejar a sua morte cuidadosamente. 

— Aquele bichinho com asas era seu animal de estimação então?

— Eu fiz um pacto. Ele me garantiu que você iria ao meu encontro. Só tive de aguardar. Foi mais fácil do que atrair uma criança para uma doceria. 

— E se a criança comesse todos os seus chocolates?

— Isso não vai acontecer.

Essa não era a primeira vez que eu tinha de bater de frente com uma vítima. Só era a vez mais estranha. Aquele cara era um homem morto, mas não era um fantasma. Ele era bem real. Real demais para o meu gosto. Senti sua movimentação súbita e meu reflexo foi uma esquiva que mais pareceu um espasmo. O tiro que ele desferiu atingiu minha clavícula, e eu balancei para trás tentando me equilibrar. Meu oponente não recebeu bem o recuo da arma e também deu alguns passos para trás. Aquelas frações de segundos foram importantes para que eu firmasse meus pés. Ele apontou novamente, mas dessa vez foi muito mais previsível. Antes que seu dedo puxasse o gatilho, eu já havia saído da mira de sua arma. Ele hesitou e eu me arremessei contra seu corpo. Ambos caímos no chão e os revólveres foram soltos. Antes que ele pudesse tentar se levantar, eu já estava sobre seu corpo desferindo golpes certeiros em suas têmporas. Me levantei rapidamente e, antes que ele se recuperasse, peguei minha pistola e o coloquei na mira.

— Como pode? — ele murmurou, ainda desorientado pelos socos. 

— A Morte disse que gostou de mim e me deu uma segunda chance. Ela lhe garantiu que eu viria ao seu encontro, não que você acabaria comigo. Talvez ela não goste de ser perturbada por causa de uma simples vingança. Me matar era tarefa sua. 

— Seu maldito.

— A criança se lambuzou com os chocolates.

A neblina densa não me permitia enxergar nem o outro lado da rua. Eu estava sentado no balcão de um boteco fedorento enquanto tomava uma dose do uísque mais forte que aquela espelunca podia servir. Minha garganta ardia enquanto eu ainda avaliava qual das prostitutas eu deveria escolher. Na televisão, o âncora do jornal matraqueava baboseiras sobre o presidente de uma empresa gigante que morrera com um tiro misterioso no peito. Tomei o último gole e escolhi a morena. Sempre preferi as morenas mesmo.

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