2 de março de 2015

Carta endereçada a minha querida Spes

Olá, Spes.

Percebi, ao acordar, que você estava usando um vestido branco e dourado ontem a noite. Aonde foi tão bela? Bem, se todos soubessem o quanto um vestido causaria. Mas você, obviamente, não sabia. Você apenas o colocou. Eu sabia do que ele seria capaz. Em mim, claro.
E eu fico aqui pensando, - parado e sentado nessa poltrona, enquanto vejo um belo programa de TV - que o mundo, de repente poderia acordar de outra cor também. Você diz para mim que, na foto, está em preto e azul. Percebo que chegamos a discutir. Spes, isso não se trata de um vestido.

Como quando eu fui até a padaria e vi uma notícia sobre mulheres que estavam sendo ameaçadas por falarem as suas ideias feministas para o público da internet. Você pode ver, Spes, que não é o vestido. O buraco é muito maior e a genética deve ter alterado muito mais do que as percepções de cores no olhar humano.

Mentira. Não é culpa da genética, isto seria determinismo. Digo-lhe que o problema é muito maior. Se somos capazes de duvidar tanto em nossa visão de mundo da autenticidade do que o outro fala e da versão científica dos fatos, imagina quando estamos imersos em uma sociedade com profundas raízes, que são passadas de geração a geração. E você, lança um olhar. Olhos estes que provocam um carinho de amêndoas batendo na língua. Talvez você desconheça a sensação. Mas eu bem a sei que é só minha, tal qual a minha percepção. Percepção.
De quê? Quem somos nós, Spes? Para onde vamos quando tudo isso acabar? O que fazemos com o que sobra? Ah, você estava magnífica naquele vestido dourado e eu a chamei para dançar, como quem não quer nada. Mas, por trás de toda ação há um requerimento de resposta. E meus olhos queimavam (não da mesma maneira em que queimaram, naquela semana, os livros da época de A.C., que estavam no Iraque). Spes, não se trata da dança ou do vestido. Como quando você cismou que o sorvete de Pistache tinha gosto de limão ou que, a foto, o vestido era preto e azul. E qual é o certo, Spes? São as suas percepções, o seu ponto de vista. Eu sou um homem velho, caduco, em adaptação. Você diz. Não diz? E o nosso cachorro não ligou nada para o gosto do sorvete. Enquanto discutíamos, ele o comeu. E não estou falando apenas do cachorro, Spes. Nossas preocupações são tão rasas ao mesmo tempo em que são profundas. O vestido é só um vestido. Ele mostra que nem sempre sua visão de mundo é a mais correta de todas e nem que ela deve ser descartada. Mas revisada.

Humildade.
A foto do vestido é humilde porque apresenta possíveis visões de mundo. Há verdade por trás dela? Sim. O vestido, de fato, é azul e preto. E este é o momento que você me olha com aquela cara soberana de quem tinha razão.

Razão.
Qual de nós tinha razão? É certo dizer a alguém, que só vê branco, que aquela cor é preto? É  certo dizer a um homem ou mulher, que apenas se vê como dominante, que ele ou ela não é o dono do mundo? Sim, é certo. Porque é razão e humanidade.

Humanidade.
Mesmo que algumas pessoas discordem ou não enxerguem o que o outro desejava falar, ela deve ter o direito de dizer, porque é humana. O outro deve ter a humanidade de escutá-la porque é homem ou mulher, ou criança, ou adolescente, ou idoso, ou negro, ou “lésbica e gay”, ou muçulmano, ou judeu, ou cristã, ou estudante, ou louco.

Loucura.
É loucura defender teses que prejudicam e são provadas como não certas? Spes, diga a eles para que encerrem com isso. Estou triste e desconsolado. Não é só o vestido, Spes. Todos nós defendemos o nosso modo de ver o mundo e vamos com ele até o final, temerosos de questioná-lo. Não sabemos como abordar aquele que vê o branco. 
Abordagem.
Será, Spes, que o mundo está um caos porque não sabemos abordar de forma eficiente aqueles que propagam o mal? Às vezes sabemos e, por hora, não. Olho para o programa de TV (não tão bom assim) e um homem está confessando um estupro. Em plena rede nacional. Parece que é bonito. Que tipo de lugar é esse em que vivemos? Não é apenas um vestido. Se não houvesse a ciência, os jornalistas, o boca a boca,  os estudos, a tolerância… Se não fosse tudo isso, os que veem o vestido branco ainda continuariam apostando suas vidas que ele é de fato branco. Então, é este o nosso papel, Spes. Papel.
Nas escolas, nos trabalhos, nos livros, nas revistas, nas redações, nos blocos de notas e barquinhos de sonhar. De papel. Sempre estar revisando as nossas ideias, os nossos papeis, as nossas abordagens, nossa loucura, razão, humanidade, percepção e mentiras. Mentiras que nós próprios contamos. Mentira que eu te conto, Spes, quando digo que perdi a fé. Eu não a perdi, simplesmente porque isso iria contra tudo o que eu disse anteriormente. Terra.
Quando perceberemos que pertencemos a mesma tellūs (que é tua irmã no latim mais puro e significa Terra) e que há pensamentos retrógrados, engajamos na luta contante para mudá-los. Por tudo o que já passamos, eu ainda acredito na melhora do ser humano, assim como acredito na minha própria, minha querida Spes.
Até logo, Esperança.
Teu nome é belo, como todas as palavras no latim.

Um comentário:

  1. Oi Bruna. Como vai?
    Eu também estou bem. Vim dar uma olhada no seu blog e logo li este Artigo/Poema/Prosa? Apesar de um pouco abstrato, no meu ponto de vista, achei muito bonito e original. E pensei naquele vestido que anda ou andou nas redes sociais, cuja cor causou polémica. E a Bruna conseguiu, com mão de mestre, "pintar" a versão acrescentando-lhe algo mais, muito seu, o que resultou num lindo texto em prosa/poesia. Os meus sinceros parabéns.
    A minha escrita nem de longe se parece com poesia. Escrevo "preto no branco" numa linguagem talvez demasiado simples e que, no fundo e no meu entender, falta-lhe um pouco dessa poesia que não sei escrever.
    Fico feliz com a sua felicidade e por comentar no Face. Não imaginava que um simples comentário meu pudesse despertar essa felicidade de que fala. Também eu fiquei feliz.
    Também gosto de saber que tem parentes em Vila Nova de Gaia e na Mata. Gaia fica a norte e Mata (se é a aldeia que eu conheço) fica mais para o centro e pertence ao concelho de Torres Novas.
    Eu vivo numa aldeia do centro de Portugal nos arredores de Fátima. Não sei se já ouviu falar. Diz-se que é o Altar do Mundo por causa dos Milagres de Nossa Senhora que apareceu a três crianças no ano de 1917.
    Quando li o seu texto no Scriber julguei que estava perante uma escritora conceituada, uma pessoa com um Curso Superior. Como consegue, aos 20 anos, escrever tão bem???
    No meu caso eu também comecei a escrever aos 20 e poucos só que depois construí uma família e, durante muitos anos, não tive tempo para ler nem para escrever. Só para trabalhar - a tempo inteiro - e cuidar da minha família. No entanto, as histórias que escrevi, na minha juventude, para uma revista feminina - 4 - foram publicadas e 3 premiadas. Na altura teria gostado de continuar mas não me foi possível.
    Só pude estudar em adulta, aos poucos, e quando terminei um Curso Superior de Francês já tinha 46 anos. Foi na Suiça onde estive dez anos com a minha família. Agora estou na pré-reforma.
    Peço desculpa porque o comentário já está muito longo.
    Iremos trocando e-mails.
    Ah! Agradeço pela força para não desistir. De facto, por vezes penso que já sou demasiado idosa para "brincar aos blogs". Risos. Ah! e outra coisa: publiquei dois livros e um foi aí no Brasil.
    Abraços e um bom final de semana.

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