28 de março de 2014

O eu no outro


Como todos os seus amigos, João sonhava em ser jogador de futebol quando criança. Passava tardes inteiras brincando pelas estreitas vielas da favela, chutando a bola para lá e para cá, e de vez em quando até para acolá. Seu melhor amigo foi aprovado no teste de um grande time da cidade aos dez anos e foi embora de lá. Mudou-se do barraco em que morou a vida toda para um belo apartamento num bairro nobre, bancado pelo clube.

Como todos os seus amigos, João sonhava em ser jogador de futebol quando criança. Ou policial. Ou bombeiro, ou astronauta, ou presidente. Talvez presidente. Nunca ouviu falar de um presidente nascido em uma favela. Seria um feito importante. Seu pai sempre lhe dizia que tinha de estudar. Pelo menos lhe dizia até o dia em que fora morto por engano numa invasão da polícia no morro. 


João, que morava no barraco ao lado, nunca mais o viu. Soube pelos jornais, muito tempo depois, que seu conhecido estava na Europa. Ele mesmo nunca se tornou jogador de futebol. Quando chegou à adolescência, quis ser músico. Desistiu rapidamente desse objetivo, no entanto, quando entrou para a corporação. Seus amigos de infância nunca mais falaram com ele depois que o viram fardado.

Nunca conhecera um policial, mas sabia que não gostava deles. Não gostava do frio também, e nem de verduras. Gostava, entretanto, de ovo frito – adorava ovo frito – e de pizza. Gostava de cinema e de música, e de chocolate também. Ouvia muito samba e acabou montando um grupo para tocar. Conseguia alguns shows em bares e restaurantes, e ganhava a vida com isso. 

Definitivamente, aquela farda era um fardo, mas era também a única forma que João encontrou para ganhar a vida. Não tinha uma rotina bem definida e gostava disso, mas às vezes passava por situações perigosas e sentia medo. João tinha medo também de aranhas e de voar de avião. Certa vez, teve de ir para outro estado e quase não conseguiu concluir a viagem. Passou o trajeto inteiro ouvindo os sambas preferidos. 

A mãe sempre lhe dizia para ficar longe das drogas, e ele ficava. Às vezes. Gostava de sair com os amigos. Gostava também de política. Tentou se filiar a algum partido, mas não encontrou nenhum alinhado aos seus ideais e preferiu não se vender só para ganhar um cargo público. Não queria dinheiro. Ele sonhava em mudar o mundo, ou pelo menos uma parte dele. Sonhava em melhorar a vida das pessoas de sua comunidade. Criou, com o dinheiro arrecadado em seus shows, uma ONG para ajudar as crianças carentes da favela. 

Gostava muito de samba e de sertanejo. Gostava também de pizza, chocolate e ovo frito. Adorava ovo frito. De verdade. João não gostava de verduras, nem de frio. Gostava de ouvir o som das gotas de chuva batendo no telhado do quarto enquanto dormia. Não entendia muito de política. Queria saber mais sobre o assunto, mas ninguém nunca o ajudou com isso e ele não era muito de ler. Na verdade, não sabia ler muito bem. Não conhecia muitos filmes, mas gostava de todos ao quais assistia, mesmo que não os compreendesse perfeitamente. Também não conhecia ninguém com seu nome, apesar de tão comum.

Gostava de ajudar os outros. Adorava ler. Criou até uma biblioteca no bairro, além de uma escola de música. Amava seus alunos. Não gostava, porém, de aviões. Tinha pavor, aliás. Nunca havia viajado de avião, mas não teria coragem se um dia precisasse. Não tinha medo, porém, de lutar pelo que achava certo. 

A chuva caía em pancadas fortes naquela tarde, encharcando a farda.  João perseguia um assaltante que havia acabado de cometer um crime. Estava em seu encalço, prestes a capturá-lo, a arma em punho, a expressão fechada. Subitamente, outro suspeito veio correndo em sua direção. Provavelmente era o comparsa do indivíduo que fugia. João tinha de se defender da ameaça iminente.

Não hesitou em defender seu aluno de longa data, o adolescente que fugia do homem fardado no meio de uma viela escura e estreita. João nunca conhecera um policial, mas sabia que não gostava de nenhum deles. Partiu para cima do agressor. Não deixaria que fizesse mal ao garoto que vira crescer.

João nunca conhecera alguém com seu nome, mas quando viu João disparando em sua direção naquele beco escuro e estreito, teve certeza que se tratava de um criminoso. Nascera naquela favela e sabia que era um lugar cheio de perigos. Com dois tiros certeiros, derrubou o suspeito para sempre. 

23 de março de 2014

Você tem uma visão tão estreita de mundo



Um dia apático, mas que grande confusão está hoje nesse dia maravilhoso. Pego o meu livro e ele me diz o tempo todo loucuras insensatas, que eu não saberia perguntar a mim mesma do nada. Fora dele e de tantos outros o mundo respira como se soubesse a verdade, uma verdade grosseira e um pouco conturbada.

Dentro do metrô, o vagão corria assim como a busca pelas verdades corre. E tudo estava bem enquanto ele corria, porque ninguém repara nas paredes enquanto o vagão corre. Ninguém repara nas diversas variáveis enquanto a vida segue, mas basta um tranco para perceber como as paredes daquele túnel são apertadas. O quanto elas estão próximas da janela e o quanto a janela está próxima da gente.  Elas poderiam facilmente esmagar alguém se não fosse o vidro impenetrável. Impenetrável? Ou a bolha de metal e vidro que mantém a gente longe da parede que corre?

E as verdades, seriam elas assim impenetráveis? Cada um carregando a sua dentro da bolha de metal? Estariam as pessoas se sentindo sufocadas quando parassem por um momento a incessante busca e percebessem que existem paredes, que nem sempre elas estão bonitas e limpas?

As paredes começam a vir em minha direção. Ou sou eu que vou na direção delas? Estou parada e elas também estão. Todos estão parados e ninguém parece perceber que as paredes estão se mexendo. Apesar de saber que fisicamente sou eu que corro, ninguém também parece ir em direção a elas. Ninguém parece querer saber de fato as diferentes versões e explicações.

Pensei que seria esmagada ali mesmo e que, pior, ninguém perceberia. Ninguém perceberia que muitas verdades poderiam esmagar. Mas o vagão começou a andar e as paredes agora apenas coexistiam com a velocidade do trem. Ou nós coexistíamos com a velocidade do trem? O trem não pode parar.

Saí da estação, o teto parecia descer em minha direção. Ou eu que parecia subir em direção a ele?  Têm vezes que é mesmo assim, a gente não sabe se está indo em direção a uma informação nova ou se é ela que está vindo em nossa direção. Talvez o fato é que estamos sempre indo um de encontro ao outro.

 Pensei que seria esmagada novamente, mas por sorte sai da escada antes que...  Antes que eu descobrisse que certa verdade que eu carrego estava errada? E se estivesse?

Fui até o local de destino pegar minha carteira de trabalho. Um deficiente visual estava na minha frente na fila, mas ele parecia me olhar e, pior, parecia me enxergar; era de uma incoerência sem precedentes.
E ele parecia dizer:
"Você tem uma visão tão estreita de mundo. Sua visão de mundo é tão estreita".

E eu olhava sem entender; porque ele não dizia nada e também não podia me ver. Nas ruas as pessoas passavam, não sei qual a novidade disso. E eu cheia de preocupações, com tantas certezas.  As pessoas passando cada vez mais próximas a mim, sussurrando ao meu ouvido:
"Você tem uma visão tão estreita de mundo".

         E eu sabia que era verdade porque eu não sei de nada. Eu tenho uma vaga noção do que talvez possam ser algumas verdades, tenho vaga noção daquilo que as pessoas consideram verdades absolutas e que despejam sobre mim. Ao mesmo tempo em que também não tenho uma visão clara de que moldes as pessoas esperam que eu me encaixe. Ao mesmo tempo que eu sei; para resolver algo é preciso ver além.


E eu quase podia ouvir, as paredes, as escadas, os cegos, todos eles sussurrando também para essas pessoas e para todo mundo que não consegue resolver algo:
- Sua visão de mundo é tão estreita.
E eu sabia que essa era uma verdade. Temos visões de mundo muito estreitas, sempre dá pra expandir mais e mais. Na volta leio meu livro de novo e ele me diz o tempo todo loucuras insensatas, que eu não saberia perguntar a mim mesma do nada.
Ele me questiona se o que eu considero verdade seja verdade para todo mundo. Alguns livros se fazem essenciais nas nossas vidas, alguns livros gritam:
- Você tem uma visão tão estreita de mundo.

E quando as paredes, os cegos, as pessoas e os livros começam a parecer querer te dizer as mesmas coisas, você tem que entender... É hora de tentar mudar. 

3 de março de 2014

O que deveria ter sido dito à Rapunzel

Por: Bruna Meneguetti. 


- Que droga de vida. Eu estou aqui esperando nessa torre do castelo e absolutamente ninguém aparece para abrir essa única porta ou assoviar de lá de baixo. Não sei para quê cultivar essa trança estúpida. Estou tão infeliz. – Rapunzel sibilava como uma criança de seis anos, resmungando por todas aquelas incoerências, enquanto apoiava a cabeça na sua mão.
- Quanto mais você bancar a coitada, mais a vida vai te dar motivos para ser uma de verdade.
Rapunzel assustou-se, olhou na direção que o som vinha e percebeu uma mulher de meia idade sorrindo.
- Quem é você? – Perguntou sem hesitar.
- Meu nome é Realidade, mas você pode me chamar de Rê.
- Está certo, Rê. Mas você não me serve. Agora, por favor, saia daqui para que alguém realmente possa me salvar.
- Escute aqui, garota estúpida. – Rapunzel arregalou os olhos e parou de enfeitar a trança. – Será que você não percebeu que nunca tentou forçar a porta? Vai mesmo ficar aí parada esperando que alguém a salve, que alguém a faça feliz? Não acha que está colocando muita responsabilidade nas mãos de alguém?
Rapunzel foi esquivando para trás, as perguntas ricocheteavam nela. Tentar forçar a porta?
- Não teria força para arrombar a porta. – Disse irresoluta no seu parecer.
- Já tentou pegar aquela cadeira de madeira maciça? – A mulher apontou.
- Eu poderia quebrar minha mão tentando abrir a porta com isso.
- A questão não é essa, garota. Há sempre o risco de quebrar a mão. Mas eu não sei por que estou falando tudo isso para você, realmente você acha que a responsabilidade de toda a sua infelicidade é de alguém que deveria ter chegado e ainda não chegou?
- Mas e se eu conseguir abrir a porta? O que eu farei depois? É óbvio que vou continuar sozinha e infeliz.
- Você pode continuar sozinha, mas jamais infeliz. Pode ter a melhor pessoa do mundo ao seu lado, mas ela não vai lhe bastar se você não se fizer feliz.
Rapunzel cerrou os olhos. Ela estava mesmo colocando muita responsabilidade em alguém, tantas vezes ela acordou sozinha naquele castelo e foi capaz de cantar e dançar. Tantas vezes ela riu e se entreteve sem ninguém. Determinada, ela andou até a cadeira de madeira e a pegou, olhou mais uma vez para a mulher na sua frente:
- Mas e se...
- Sempre há o risco de você quebrar a mão. – A mulher interrompeu impaciente.
Rapunzel andou para trás, tomou impulso enquanto segurava a cadeira e correu. Um som de madeiras batendo tomou todo o cômodo, Rapunzel caiu um pouco tonta. Atrás da porta e da cadeira caídas estava uma enorme escada e ela desceu sem pensar duas vezes. Logo atrás estava Realidade sorrindo.
Quando terminou de descer viu que um rapaz estava olhando a torre, Rapunzel começou a gargalhar.
- Se você veio para me salvar, chegou tarde. Não preciso ser salva. – Empinou o nariz ao terminar de dizer.
- Você estava lá dentro sozinha? – O homem a olhou encantado, surpreso e temeroso. Encantado pela beleza que estava diante de seus olhos, surpreso pelo tom com que ela lhe dirigia a palavra e temeroso por ela ter ficado presa naquele lugar.
- Estava. Mas adivinhe só? Ninguém pode ser responsável pela minha felicidade, não acha que estou colocando muita responsabilidade em cima de você ao esperar que você me salve?
A realidade não pôde conter o riso ao seu lado, enquanto isso o homem tentou dizer em vão:
- Mas eu...
Não terminou a frase, Rapunzel cortou sua fala como se sua voz fosse uma faca afiada.
- Eu não preciso de ninguém para ser feliz, posso perfeitamente ser feliz sozinha. Por isso, vou pegar este cavalo e ir embora. Espero que você também não deposite toda a responsabilidade de sua infelicidade em mim e não diga que eu sou a causa de todo o seu sofrimento. Mas se quiser fazer isso, a porta da torre está aberta.
Dito isso, ela montou no cavalo e saiu a galope enquanto a Realidade fazia uma careta.
- Rapunzel? – De alguma forma Rê estava logo atrás da garota impetuosa, mas ela sequer se atreveu a olhar para trás.
- Agradeço o que você fez por mim Rê, mas eu não preciso de ninguém para ser feliz. – Ela segurava firmemente as rédeas enquanto sentia o vento acariciar o seu rosto.
- Rapunzel.
- Rê, dispenso sua companhia agora. Não quero pôr a responsabilidade de minha felicidade em cima de você.
- Rapunzel! – A Realidade gritou em uma voz tão aguda que o cavalo se assustou, empinou-se e Rapunzel não conseguiu se segurar, escorregou até encontrar o chão.
- Você está louca? – Disse Rapunzel enquanto tentava ajeitar o vestido e se levantar. – Eu poderia ter quebrado a minha mão!
- Sempre há o risco de você quebrar a mão. – Realidade argumentou um pouco entediada com toda aquela situação.
- Por que fez isso? – A garota ainda estava um pouco tonta e mexia no pulso, provavelmente verificando que estava tudo bem.
- Escute aqui, garota estúpida. Quem você acha que é? Só porque conseguiu abrir uma porta velha e cheia de cupins está achando que não precisa de ninguém para nada? Só porque conseguiu sair de uma torre idiota, percebendo que estava bancando a tonta, agora decidiu ser mais tonta ainda.
Rapunzel a olhou:
- Do que você está falando? Foi você mesma que disse que eu deveria sair da torre e não precisava de ninguém para ser feliz.
Realidade bufou, soprando alguns fios que estavam na frente de seu rosto.
- Sente-se um pouco. – Ela segurou a mão da garota. – Eu não disse isso. Eu disse que só você tem o poder de decidir quando vai ser feliz, mas realmente você acha que poderia ser feliz completamente sozinha? – Rapunzel ainda a olhava confusa. – Você realmente acha que saindo nessa floresta sozinha, não precisaria da ajuda de ninguém e que seria capaz de conversar apenas com as árvores?
- É muito triste ficar sozinha. – Rapunzel concordou lembrando-se dos dias chuvosos e tediosos dentro daquela torre.
- Eu disse para ir atrás da sua felicidade, independente de qualquer pessoa. Não disse para se fechar do mundo inteiro e achar que não precisa de ninguém para nada. Ou você acha que consegue ser um robô, sem convívio social, sem sentir o que é amar? Sem saber o que é dizer algo bobo e rir em conjunto, sem saber o que é dividir alguns problemas e tristezas?
- É, acho que eu não conseguiria. – De súbito, Rapunzel começou a chorar e berrar. – EU FAÇO TUDO ERRADO, SOU UMA PESSOA IDIOTA. DEIXEI O RAPAZ QUE VEIO DE BOA INTENÇÃO TENTAR ME SALVAR SEM AO MENOS EXPLICAR A SITUAÇÃO PARA ELE. E EU ROUBEI O SEU CAVALO, QUE TIPO DE PESSOA EU SOU? MEREÇO APODRECER NAQUELA TORRE. É ISSO. VOU VOLTAR E ME TRANCAR LÁ NOVAMENTE.

Enquanto Rapunzel falava, Realidade olhava as unhas. Estavam lascadas, será que aquilo iria demorar muito?

- POR FAVOR ,  ME DEIXE LÁ E NÃO VOLTE MAIS PARA ME SALVAR.
Mais uma vez Realidade colocou a mão na testa e soltou uma voz estridente.
- Cale a boca, garota estúpida. – Agora ela podia sentir que Rapunzel parava de chorar e a olhava. – Quanto mais você bancar a coitada...
- Mais a vida vai te dar motivos para ser uma de verdade. – Rapunzel completou a frase limpando as lágrimas.
De súbito levantou-se e subiu no cavalo. Ainda tinha o pulso um pouco dolorido.
- E se eu cair e realmente quebrar a mão dessa vez?
- Sempre há o risco de você quebrar a mão. – Realidade disse dando um tapinha no cavalo que começou a andar.
- Rê, ele é um príncipe? – Ela não pôde evitar fazer essa pergunta.
- Pode ter certeza que não.  – A mulher respondeu sorrindo e acenando. A garota agora galopava contra o vento.
Guiou o cavalo em direção à torre e pôde ver um homem sentado e entediado fazendo um círculo na terra.
- O que você está esperando? – Rapunzel tirou-lhe a concentração, ele ficou um tempo a olhando sem entender porque ela tinha voltado.
- Meu amigo estava bem atrás de mim, logo ele me achará. – Ele sorriu confiante, era bonito e ela nem havia reparado o quanto.
- Desculpe pelo que lhe falei hoje, fiquei muito tempo presa lá dentro e quando finalmente sai... Bem, as ideias não estavam fluindo muito bem. Desculpe-me.
Ele iria dizer que não desculpava, mas ela parecia totalmente arrependida. Estendeu a mão e docemente disse:
- Prazer, sou Rapunzel. Você não é algum príncipe de uma província, é?
Ele riu:
- Prazer, sou Luís. Não sou um príncipe, sinto muito.
Rapunzel deu de ombros:
- Tudo bem, me avisaram que você não era.
- Quem te avisou?

Ao longe a mulher sorria. Ela podia reconhecer um pouco de Rapunzel nele e, na verdade, ela podia reconhecer um pouco de Rapunzel em todo mundo. 

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